O Brasil deu certo?

29/08/2013 22:52

 

  No ano de sua independência, o Brasil tinha, de fato, tudo para dar errado. De cada três brasileiros, dois eram escravos, negros forros, mulatos, índios ou mestiços. Era uma população pobre e carente de tudo, que vivia à margem de qualquer oportunidade em uma economia agrária e rudimentar, dominada pelo latifúndio e pelo tráfico negreiro. O medo de uma rebelião dos cativos assombrava a minoria branca. O analfabetismo era geral. De cada dez pessoas, só uma sabia ler e escrever. Os ricos eram poucos e, com raras exceções, ignorantes. O isolamento e as rivalidades entre as províncias prenunciavam uma guerra civil, que poderia resultar na divisão do território, a exemplo do que já ocorria nas vizinhas colônias espanholas. Para piorar a situação, ao voltar a Portugal, em 1821 — depois de 13 anos de permanência no Rio de Janeiro —, o rei D. João VI havia raspado os cofres nacionais. O novo país nascia falido.

  Faltavam dinheiro, soldados, navios, armas e munição para sustentar a guerra contra os portugueses, que se prenunciava longa e sangrenta. As perspectivas de fracasso, portanto, pareciam bem maiores do que as de sucesso.

O Brasil conseguiu manter a integridade do seu território e se firmar como nação independente por uma notável combinação de sorte, acaso, improvisação, e também de sabedoria de algumas lideranças incumbidas de conduzir os destinos do país naquele momento de grandes sonhos e perigos. O Brasil de hoje deve sua existência à capacidade de vencer obstáculos que pareciam insuperáveis em 1822. E isso, por si só, é uma enorme vitória, mas de modo algum significa que os problemas foram resolvidos. Ao contrário. A Independência foi apenas o primeiro passo de um caminho que se revelaria difícil, longo e turbulento nos dois séculos seguintes. As dúvidas a respeito da viabilidade do Brasil como nação coesa e soberana, capaz de somar os esforços e o talento de todos os seus habitantes, aproveitar suas riquezas naturais e pavimentar seu futuro persistiram ainda muito tempo depois da Independência.

  Em 1877, 43 anos após a morte de D. Pedro I e 12 antes da Proclamação da República, o grande abolicionista pernambucano Joaquim Nabuco, um dos brasileiros mais ilustrados de seu tempo, perguntava: “Deve ou não o povo participar da política (...) pelas condições especiais em que nos achamos, de território, de população, de trabalho escravo e de distribuição de propriedade?” Com linguagem diferente, era a mesma observação que o mineralogista José Bonifácio de Andrada e Silva havia feito em 1812 ao analisar as perspectivas de êxito do Brasil. “Amalgamação muito difícil será a liga de tanto metal heterogêneo, (...) em um corpo sólido e político”, ponderava o futuro Patriarca da Independência em carta a D. Domingos de Sousa Coutinho, embaixador de Portugal na Inglaterra. As incertezas de Bonifácio e Nabuco, dois homens separados por mais de meio século na História, poderiam ser traduzidas da seguinte forma: Dá para construir um país com essa matéria-prima? Em outras palavras, seria possível fazer um Brasil homogêneo, coerente e funcional com tantos escravos, pobres e analfabetos, tanto latifúndio e tanta rivalidade interna? Bonifácio e Nabuco, obviamente, não tiveram oportunidade de testar as suas hipóteses. O primeiro morreu em 1838, quando o país ainda se debatia com inúmeros conflitos regionais, como a Revolução Farroupilha do Rio Grande do Sul, que pareciam confirmar os temores da divisão territorial. O segundo faleceu em 1910, sem ver a legião de escravos libertos duas décadas antes incorporados à sociedade produtiva brasileira, como sonhava.

  Hoje, com o distanciamento oferecido pela passagem do tempo, que resposta haveria para as interrogações de Bonifácio e Nabuco? O Brasil conseguiu, afinal, fazer a “amalgamação de tanto metal heterogêneo em um corpo sólido e político”? Em resumo: o país deu certo ou errado? A resposta, como sempre, depende do ponto de vista do observador.

Se comparado aos Estados Unidos, o Brasil poderia ser apontado como um retumbante fracasso.Embora estejam situados no mesmo continente e tenham idêntico tempo de história, os dois países exibem hoje índices econômicos e sociais muito diferentes. Maior potência do planeta, os Estados Unidos tem um Produto Interno Bruto (PIB) aproximadamente 12 vezes superior ao brasileiro e, entre outras conquistas, já mandou um homem para a Lua há mais de quatro décadas, coleciona 74 ganhadores de prêmio Nobel em diversas áreas do conhecimento e apresenta números invejáveis no IDH, o índice das Nações Unidas que mede o grau de desenvolvimento humano. Enquanto isso, o Brasil patina em níveis intoleráveis de pobreza, jamais conseguiu colocar um artefato em órbita e nunca foi premiado com o Nobel. Se, porém, a comparação for o Haiti, um país à beira da ruptura e às voltas com intermináveis conflitos políticos agravados por desastres naturais, o Brasil pode ser considerado um extraordinário caso de sucesso.Essas conclusões apressadas mostram que, na História, sucesso ou fracasso são sempre conceitos relativos e raramente permitem comparações. Brasileiros, norte americanos, haitianos, ingleses, franceses, russos e chineses são povos com raízes inteiramente diversas, o que explica também as diferenças nas suas trajetórias. Por isso é tão importante estudar o passado. A observação das raízes do Brasil no ano de seu nascimento como nação independente ajuda a explicar o país de hoje.“Entender o passado em toda a sua complexidade é uma forma de adquirir sabedoria, humildade e um senso trágico a respeito da vida”, escreveu o historiador americano Gordon S. Wood, autor do livro The Purpose of the Past: Reflections on the Uses of History e vencedor do Pulitzer, o mais prestigiado prêmio literário dos Estados Unidos. “Senso trágico não significa ser pessimista, mas apenas compreender a vida com todas as suas limitações.”Convicções e projetos grandiosos, que ainda hoje fariam sentido na construção do país, deixaram de se realizar em 1822 por força das circunstâncias. José Bonifácio de Andrada e Silva, um homem sábio e experiente, defendia o fim do tráfico negreiro e a abolição da escravatura, reforma agrária pela distribuição de terras improdutivas e o estímulo à agricultura familiar, tolerância política e religiosa, educação para todos, proteção das florestas e  e tratamento respeitoso aos índios. Já naquele tempo achava ser necessária a transferência da capital do Rio de Janeiro para algum ponto da região Centro-Oeste, como forma de estimular a integração nacional. O próprio imperador Pedro I tinha idéias avançadas a respeito da forma de organizar e governar a sociedade brasileira. A constituição que outorgou em 1824 era uma das mais inovadoras da época, embora tivesse nascido de um gesto autoritário — a dissolução da assembléia constituinte no ano anterior. O imperador também era um abolicionista convicto, como mostra um documento de sua autoria hoje preservado no Museu Imperial de Petrópolis.

 Nem todas essas idéias saíram do papel, em especial aquelas que diziam respeito à melhor distribuição de renda e oportunidades em uma sociedade absolutamente desigual. O Brasil conseguiu se separar de Portugal sem romper a ordem social vigente. Viciada no tráfico negreiro durante os mais de três séculos da colonização, a economia brasileira dependia por completo da mão de obra cativa, de tal modo que a abolição da escravatura na Independência revelou-se impraticável. Defendida por homens poderosos como Bonifácio e o próprio D. Pedro I, só viria 66 anos mais tarde, já no finalzinho do Segundo Reinado. Em 1884, faltando cinco anos para a Proclamação da República, ainda havia no Brasil 1.240.806

escravos.É curioso observar como todo o cenário da Independência brasileira foi construído pelos portugueses, justamente aqueles que mais tinham a perder com a autonomia da colônia. O Grito do Ipiranga foi conseqüência direta da fuga da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808. Ao transformar o Brasil de forma profunda e acelerada nos 13 anos seguintes, D. João tornou a separação inevitável. Ao contrário do

que se imagina, porém, a ruptura resultou menos da vontade dos brasileiros do que das divergências entre os próprios portugueses. Segundo uma tese do historiador Sérgio Buarque de Holanda, a Independência foi produto de “uma guerra civil entre portugueses”, desencadeada na Revolução Liberal do Porto de 1820 e cuja motivação teriam sido os ressentimentos acumulados na antiga metrópole pelas decisões favoráveis ao Brasil adotadas por D. João.Até as vésperas do Grito do Ipiranga, eram raras as vozes entre os brasileiros que apoiavam a separação completa entre os dois países. A maioria defendia ainda a manutenção do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, na forma criada por D. João em 1815. Foram o radicalismo e a falta de sensibilidade política das cortes constituintes portuguesas, pomposamente intituladas de “Congresso Soberano”, que precipitaram a ruptura. Portanto, os brasileiros apenas se aproveitaram das fissuras abertas na antiga metrópole para executar um projeto que, a rigor, ainda não estava maduro. De forma irônica e imprevista, Portugal completou o ciclo de sua criação nos trópicos: descoberto em 1500 graças ao espírito de aventura do povo lusitano, o Brasil foi transformado em 1808 em razão das fragilidades da Coroa portuguesa, obrigada a abandonar sua metrópole para não cair refém de Napoleão Bonaparte; e, finalmente, tornado independente em 1822 pelas divergências entre os próprios portugueses. “A revolução foi concebida por completo com um sentido português e unicamente por fatores portugueses”, escreveu o diplomata

britânico Edward Thornton ainda no século 19.“Portugueses e só portugueses continuariam ainda em cena nos primeiros tempos da regência de D.Pedro”, acrescentou o historiador brasileiro Octávio Tarquínio de Sousa.Uma segunda tese de Sérgio Buarque de Holanda, aprofundada pela professora Maria Odila Leite da Silva Dias em A interiorização da metrópole e outros estudos, afirma que o sentimento de medo, fomentado pela constante ameaça de uma rebelião escrava, fez com que a elite colonial brasileira nas diversas províncias se mantivesse unida em torno da Coroa.Havia muitos grupos com opiniões diferentes a respeito da forma de organizar o jovem país independente, mas todos entravam em acordo diante do perigo de uma insurreição dos cativos — esta, sim, a grande preocupação que pairava no horizonte. Dessa forma, o Brasil de 1822 triunfou mais pelas suas fragilidades do que pelas suas virtudes. Os riscos do processo de ruptura com Portugal eram tantos que a pequena elite brasileira, constituída por traficantes de escravos, fazendeiros, senhores de engenho, pecuaristas, charqueadores, comerciantes, padres e advogados, se congregou em torno do imperador Pedro I como forma de evitar o caos de uma guerra civil ou étnica que, em alguns momentos, parecia inevitável. Conseguiu, dessa forma, preservar os seus interesses e viabilizar um projeto único de país no continente americano. Cercado de repúblicas por todos os lados, o Brasil se manteve como monarquia por mais de meio século — “uma flor exótica na América”, segundo uma

definição antiga usada em obra recente pela professora Suely Robles Reis de Queiroz, da Universidade de São Paulo.

 Como resultado, o país foi edificado de cima para baixo. Coube à pequena elite imperial, bem preparada em Coimbra e em outros centros europeus de formação, conduzir o processo de construção nacional, de modo a evitar que a ampliação da participação para o restante da sociedade resultasse em caos e rupturas traumáticas. Alternativas democráticas, republicanas e federalistas, defendidas em 1822 por homens como Joaquim Gonçalves Ledo, Cipriano Barata e frei Joaquim do Amor Divino Caneca, líder e mártir da Confederação do Equador, foram reprimidas e adiadas de forma sistemática.

   No Piauí, por exemplo, ha sepulturas dos mortos da Batalha do Jenipapo, uma das mais trágicas no enfrentamento entre brasileiros e portugueses, abandonadas no meio do denso matagal que cobre as margens do rio que lhe dá o nome. Na cidade do Porto, uma placa na praça da Liberdade,

onde hoje D. Pedro I do Brasil (D. Pedro IV de Portugal) é homenageado com uma estátua, foi alvo de pichação. Alguém acrescentou uma interrogação no nome da praça: “da Liberdade?”. Em Salvador,a festa do Dois de Julho, data da expulsão das tropas portuguesas da Bahia, em 1823. É uma explosão de alegria e comemoração cívica sem paralelo no Brasil. Mas, por uma estranha contradição, o aeroporto de Salvador, que homenageava a data histórica, mudou de nome recentemente. Agora, chama-se Luís Eduardo Magalhães em memória do deputado morto em 1998.

Tudo isso ajuda a entender como portugueses e brasileiros de hoje julgam e tratam o seu passado.

 O Brasil é um acontecimento repleto de personagens fascinantes em que os papéis de heróis e vilões se confundem ou se sobrepõem o tempo todo — dependendo de quem os avalia. É o caso do escocês Alexander Thomas Cochrane. Fundador e primeiro almirante da Marinha de Guerra do Brasil, Lord Cochrane teve participação decisiva na Guerra da Independência ao expulsar as tropas portuguesas no Norte e Nordeste. De forma inescrupulosa, no entanto, saqueou os habitantes de São Luís do Maranhão e, por fim, roubou um navio do Império. Tudo isso o transformou em herói maldito da história brasileira. Outro exemplo é José Bonifácio, celebrado no sul como o Patriarca da Independência, mas às vezes apontado no Norte e no Nordeste como um homem autoritário e manipulador, que prejudicou essas regiões em favor das oligarquias paulista, fluminense e mineira, além de ter sufocado os sonhos democráticos e republicanos do período. De todos eles, no entanto, o mais controvertido é mesmo D. Pedro I. O príncipe romântico e aventureiro, que fez a independência do Brasil com apenas 23 anos, aparece em algumas obras como um herói marcial, sem vacilações ou defeitos. Em outras, como um homem inculto, mulherengo, boêmio e arbitrário. Seria possível traçar um perfil mais equilibrado do primeiro imperador brasileiro? Tentar decifrar o ser humano por trás do mito é uma tarefa encantadora .Pelo Brasil também pode constatar que a história da Independência tem sido contada excessivamente pela perspectiva das margens do Ipiranga. É como se o restante do país não existisse ou todos os demais brasileiros fossem meros coadjuvantes de acontecimentos limitados à região compreendida pelas províncias de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. É uma visão desfocada. O processo de separação de Portugal envolveu todo o Brasil e custou muito sangue e sacrifício às regiões Norte e Nordeste, onde milhares de pessoas pegaram em armas e morreram na Guerra da Independência. O estudo das rebeliões e divergências regionais do período é fundamental para entender o Brasil nascido em 1822.

 Historiadores importantes, como Francisco Adolfo de Varnhagen, o visconde de Porto Seguro, as trataram de forma preconceituosa, como se fossem produto de mentes doentias e irresponsáveis. Na verdade, eram diferentes projetos de país, que espelhavam o que estava acontecendo no resto do mundo naquele momento e só fracassaram porque foram sufocados à custa de perseguições, prisões, exílios e enforcamentos. Frei Caneca, líder da Confederação do Equador de 1824 em Pernambuco, tinha um projeto razoável de Brasil, republicano e federalista, muito parecido com o dos Estados Unidos de hoje. Passou para a história oficial como um inconseqüente porque perdeu. O projeto triunfante foi o de José Bonifácio, que previa um país integrado, monárquico e constitucional, sob a liderança de D. Pedro I. Frei Caneca acabou seus dias diante de um pelotão de fuzilamento encostado no muro do Forte das Cinco Pontas, no Recife.

  Uma década mais tarde, seria a vez do próprio Bonifácio acabar também os seus dias em exílio voluntário na ilha de Paquetá, esquecido e magoado com os rumos da política no país que ajudara a criar.

  Como faces opostas de uma mesma moeda tirada de circulação, Caneca e Bonifácio são exemplos do lado trágico da vida e suas limitações impostas pelas circunstâncias da História.


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